ASSOBIAR PARA O LADO

Nestes dias maus desligo a televisão e volto aos livros.

Eduardo Galeano, o escritor uruguaio, no seu livro, Os Filhos dos Dias, conta trezentas e sessenta e seis histórias, uma por cada dia de um ano bissexto. Todas são interessantes. Já aqui publiquei uma dessas suas histórias.

Hoje reli algumas que tinha assinaladas para vos contar e vou transcrever a que nos dá a conhecer a língua dos assobios da ilha La Gomera, nas Canárias.

Assobiando, digo”

O assobio é a língua de La Gomera.

Em 1999, o governo das ilhas Canárias decidiu que nas escolas se estudaria o idioma imortalizado pelo povo que o assobia.

Em tempos idos, os pastores da ilha de La Gomera comunicavam entre si assobiando, desde montanhas distantes, graças às ravinas, que multiplicavam os ecos. Era assim que transmitiam mensagens e contavam novidades, noticias de quem ia e de quem vinha, dos perigos e das alegrias, dos trabalhos e dos dias.

Passaram-se dois séculos, e nessa ilha os assobios humanos, invejados pelos pássaros continuam tão poderosos quanto as vozes do vento e do mar.”

Encontrei a história dos assobios contada pela Globo Play, que tem uma versão ligeiramente diferente quanto ao uso desta língua assobiada, mas confirma que continua a ser usada e que está a ser ensinada nas escolas da ilha. Com a devido vénia à Globo Play, aqui fica o link do vídeo da reportagem, espero que funcione.

https://globoplay.globo.com/v/8380563/

Nos nossos dias de hoje, quando julgávamos que pelo menos a Europa tinha aprendido todas as lições proporcionadas pela devastação causada pelas guerras, o pesadelo está de volta. Um país aqui quase ao nosso lado, a Ucrânia, está a ser destruído e as vidas das suas pessoas estão a ser ceifadas sem dó nem piedade.

No nosso país, Portugal, há outro tipo de devastação. Aqui tornou-se moda denegrir as pessoas. Todos os dias vemos magotes de jornalistas que aceleram o passo atrás de políticos apontando-lhes os microfones às costas. Quando vejo os visados mais jovens, a quem a comunicação social não larga, penso nos seus filhos pequenos e no mal que lhes deve fazer ver os pais assim na “praça pública”.

Nestes dias maus, o melhor é desligarmos as televisões e voltarmos aos livros. É o que eu faço quando estou cansada de ver tanta indignidade. Eu sei que a isto de desligar a televisão, por não querer saber mais, se pode chamar “assobiar para o lado”.

E assim se fez justiça

Com as devidas aspas vou contar uma das histórias de um belo livro que estou a ler.

É assim:

“No final do século XIX, Juan Pio Acosta vivia na fronteira uruguaia com o Brasil.

O seu trabalho obrigava-o a ir e vir, de povoação em povoação, através daquelas solidões.

Viajava numa carroça puxada a cavalos, com oito passageiros de primeira, segunda e terceira classe.

Juan Pio comprava sempre o bilhete de terceira, que era o mais barato.

Nunca compreendeu porque razão havia preços diferentes. Todos viajavam do mesmo modo, os que pagavam mais e os que pagavam menos: apertados uns contra os outros, comendo pó, sacudidos pelo incessante solavanco.

Nunca compreendeu porquê, até que num dia de inverno a carroça se atolou na lama. E então o capataz ordenou:

– Os da primeira classe ficam onde estão!

– Os da segunda descem!

– E os da terceira … empurram!

In Os Filhos dos Dias, de Eduardo Galeno, escritor uruguaio (1945 – 2015. A editora é a Antígona. Nota: o escritor, a esta história, deu o título: “dia da justiça social”.

Eu conto – Uma história fantástica de Eduardo Galeano

Eduardo Galeano, escritor uruguaio, escreveu, no seu livro “As Palavras Andantes”, histórias fantásticas que tenho estado a ler. Vou contar uma que me fez rir, cintando de cor, com a devida vénia e agradecendo ao autor que já não está entre nós. 

Uma mulher, sentada à beira de um rio, lia uma história. Era uma vez…

Um homem muito rico, dono de tudo o que havia nas redondezas, vivia triste porque não tinha herdeiros. A mulher rezava mil orações e acendia mil velas todos os dias, mas não conseguia a graça de ter um filho.

Ela enresinava a vida do seu deus com os pedidos constantes para que fizesse dela mãe. O deus andava aborrecido e dizia: “Porque insiste ela em pedir uma coisa que eu não quero dar-lhe?”.  A dada altura, cansado, fez-lhe a vontade. Ela ficou grávida, mas nasceu um ser com cara de gente e corpo de lagarto. Mesmo assim, os pais ficaram felizes. Como a fortuna era vasta deram-lhe tudo. Conforto e educação não lhe faltaram.

Passaram os anos e chegou o dia em que o filho disse aos pais que queria uma mulher, que queria casar. Foi escolhida a noiva. Fizeram-se grandes festejos para o povo. Toda a gente aplaudiu. O banquete privado foi memorável. Chegou a noite. Os noivos recolheram aos seus aposentos privados e, nessa noite, o noivo papou literalmente a noiva. No dia seguinte sobrava ele. Correu a informação de que tinha tido o azar de ficar viúvo.

Não houve quem se preocupasse com o desaparecimento da mulher. A história repetiu-se muitas vezes. Os casamentos sucederam-se e os banquetes foram em igual número. O povo vivia encantado. As noivas não faltaram e todas tiveram a mesma pouca sorte. Foram comidas.

Um dia, estando viúvo, ele resolve ir apanhar sol à beira do rio na esperança de encontrar aquela mulher que lia histórias e lá estava ela entregue à leitura. Trocaram algumas palavras e ele regressou a casa como que encantado. Só pensava nela. A noite pareceu-lhe não ter fim. Queria voltar ao rio. Estava perdido de amores quase à primeira vista.

Amanheceu e ele arrastou-se até ao sítio onde a deveria encontrar, mas ela não estava lá. A mulher não tinha voltado naquele dia. Nos muitos dias seguintes ele foi fazendo o percurso, mas em vão. Ela tinha desaparecido. Foi entristecendo. Deixou de comer e foi ficando todos os dias um pouco mais fraco. Até que deixou de sair do quarto. Já não tinha forças para se arrastar. Caiu numa depressão. Estava às portas da morte. Os pais, então, pagaram a quem a procurasse, mas todas as diligências foram em vão.

Um dia, quando ele já estava muito débil, teve um pressentimento. Voltou a muito custo ao rio e lá estava ela sentada à sua espera. Abraçaram-se e ele disse-lhe que quase tinha morrido por ela. Pediu-lhe que casasse com ele e ela aceitou.

Organizou-se o casamento. O povo teve mais uma festa de arromba. O palácio rejubilou. Quando o banquete estava no auge os noivos recolheram-se.

Ela muito terna encheu o lagarto de carícias. Massajou-lhe as costas e ele ia adormecendo. Aos poucos ela foi descascando as suas grossas escamas e devagarinho foi-o comendo, sem que ele se apercebesse, até nada restar. 

Ela dormia calmamente quando amanheceu. 

Moral da história? 

Site no WordPress.com.

EM CIMA ↑