Um fio vermelho de sangue escorre no pêlo cinzento

Há tanto tempo que os gatos desapareceram… Eles aí estão outra vez (Episódio 5).

A Gatinha Branca e o Gato Preto tinham escorregado pelas paredes e pelos muros, já um pouco cansados caminhavam ao encontro um do outro, lembram-se? Eles acabam, agora, de se encontrar.

É a primeira vez que estão tão perto. Nota-se uma certa agitação. Já se encostam e roçam os pêlos.

Agora caminham. Vão lado-a-lado. Já chegaram àquele canto do quintal da Gatinha Branca. Mas é ali, naquele preciso lugar, que o Gatão costuma aparecer.

Como prevíamos, como já tínhamos visto em diferentes ocasiões, o Gatão converge, mais uma vez, para aquele ponto. Acaba de descer aquele muro que está protegido por arame farpado.

Desta vez o Gatão não foi cuidadoso. Tinha pressa. Estava a ver o Gato Preto a aproximar-se da Gatinha. Descuidou-se e picou as costas nas farpas do arame.

Um fio vermelho, de sangue, escorre por cima do seu pêlo cinzento. Agora dá um salto e coloca-se à frente do Gato Preto, que se sobressalta, enrola as costas, eriça o pelo, afia as garras e, numa atitude guerreira, aguarda.

Mas a Gatinha não consegue disfarçar a ternura que sente pelo Gatão. A visão daquela risca de sangue, que serpenteia pelas costas e se aproxima da barriga do seu amigo ternurento, desarma-a ainda mais.

Ela desencosta-se, esquece o Gato Preto e afasta-se apressada. Já avalia os danos sofridos nas costas do Gatão e encosta-lhe a cabeça ao pescoço. O Gato Preto perde a posição de defesa e dirige um olhar de mágoa para aqueles dois.

O Gato não entende o que se passou. Mas percebe que a Gatinha se encanta com aquele gato já bem entradote na idade. Ele, jovem gato,  acha que aquele tem falta de vergonha.

O Gato Preto pensa: “mas ela ficou assim, desarmada, porquê? Terá sido aquele finíssimo fio de sangue que a fez disparar na direção do Gatão? Não acredito”. O Gato não aguenta aquela dedicação.

Ele que tinha afiado as garras para mostrar ao Gatão que devia inverter a marcha, mas nesta nova circunstância não se atreve. Agora rodopia e já se encaminha para o muro. Dá um salto para o outro lado. Lá vai ele a caminho de casa. O que irá ele decidir?

A Gatinha Branca olha novamente para a ferida do seu amigo e verifica que a origem do sangue é uma picadinha ínfima. O sangue já secou no início. O fio vermelho não vai crescer mais. Agora ela sente que se precipitou. Levanta a cabeça e olha em todas as direções à procura do Gato Preto. Já será tarde?

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Foto: Pixabay (ele está tristonho)

 

Atitudes de gatos

O Gato Preto andava roído de ciúmes. Fazia estatistas e gráficos para ver, melhor, como cresciam os minutos das passagens do outro pelo quintal da Gatinha.  Sobressaltou-se quando analisou os dados, mas voltou a distrair-se. Atitudes de gatos…

Agora está de volta. Durante algum tempo avaliou se teria vantagem no uso das garras. Mas o Gatão possuía um corpanzil de assustar um gato elegante como era o seu caso. Quando o Gato Preto o via e pensava zurzi-lo as pernas tremia-lhe.

“Mas então o que posso fazer?” pensava o Gato. “Eu adoro aquela Gatinha. Não me posso apavorar”.  O Gato continuava a pensar: “Mas tenho andado tão distraído. Há um tempo sem fim que a não vejo”. Então passou da avaliação à observação. Voltou para a janela.

No primeiro dia esteve largo tempo sentado, com as barbas a roçarem o vidro, mas não viu movimento junto à janela que estava aberta. Notava uma certa corrente de ar. Um lindo cortinado de renda branca, de vez em quando, esvoaçava no lado de fora e voltava a entrar.

Passaram mais uns dias. A janela fechava-se à noite e, de manhã, o cortinado voltava a esvoaçar. Havia gente em casa. Mas a Gatinha estava ausente da janela. O Gato voltava a desanimar.

A dona do Gato continuava com o seu negócio mágico. A avaliar pelos números gordos da sua folha de cálculo. As pessoas entravam e saiam em maior número. O Gato já não se preocupava com a dona.

Agora vejam bem o que se passa.

Aquela casa anda um brinquinho de asseio. A dona do Gato já criou dois postos de trabalho. Um para a limpeza e outro para carregar as compras e ajudar nas deslocações dos clientes mais endinheirados.

O Gato Preto agora só se preocupa com as deambulações do Gatão em redor da Gatinha Branca (mas isso também já aconteceu há muito tempo). Ela não aparece. O Gato não pensa desistir.

Mesmo agora, se olharmos com atenção para aquele prédio ali mesmo à frente, estão a ver? A janela onde um cortinado está afastado para o lado? Lá está ele, o Gato, ligeiramente inclinado para a direita, a espreitar.

Se lhe seguirmos a linha do olhar vemos que os seus olhos estão fixados numa janela, onde um cortinado branco esvoaça.

Agora se os nossos olhos voltarem à janela do Gato e regressarem à janela do cortinado que esvoaça, podem ver que, neste preciso momento, algo se aproxima do parapeito desta janela. É ela, a Gatinha Branca, depois de tantos dias de ausência.

Agora olhem para a outra janela. Do outro prédio quase em frente. Olhem bem. É o Gato que num ápice se levanta. Upsss, desequilibrou-se. Faltou pouco para gastar algumas das suas sete vidas.

Ele voltou ao ponto de simetria, agora olha intensamente para a outra janela. Os seus olhos faíscam. Mas a Gatinha está interessada no muro encimado por arame farpado. Os seus olhos deambulam naquela direção.

Mas sim, confirma-se, é mesmo verdade. É a Gatinha Branca que espreita para o outro lado. Para o lado errado, deve o Gato estar a pensar. “O que procura ela naquele quintal?” questiona-se ele, que tem medo de saber a resposta.

O Gato já não precisa de resposta. A Gatinha esquece aquele quintal e dá uma volta rápida, como se um íman a atraísse.  Os seus olhos azuis sorridentes encontram os olhos dourados do Gato que relampejam.

Os Gatos trocaram uma mensagem. Entenderam-se. Agora os dois ensaiam os saltos. Escorregam a caminho dos quintais. Já desceram. Já lá vão ao encontro um do outro. Já pensam em ronronar os dois juntos a noite inteira.

Então e agora? Olhem para o quintal do outro quarteirão. Aquele que tem um muro protegido por arame farpado. Sim, é mesmo ele. É o Gatão que caminha com a barriga a arrastar pelo muro. As costas continuam a escapar às farpas do arame. Lá vai ele a caminho do quintal da Gatinha.

E agora? O que irá acontecer? Aqueles três vão encontrar-se…

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Foto: Pixabay (eles ainda não se encontraram).

 

O Gato Preto faz estatísticas

A Gatinha Branca não é um livro aberto, mas o Gato Preto leu nos seus olhos azuis e entendeu as mensagens. Mas ele estava a deixar correr o tempo. A sua atenção estava centrada na dona. Já havia algum tempo que o Gato não cismava junto às janelas.

Nos últimos meses a sua dona “andava numa roda viva”. Pouco parava em casa. Raramente, à noite, dava três voltas à chave e já não dizia “são horas da caminha”. O Gato saia pouco. Andava preocupado e triste.

É verdade que tinha as saídas mais facilitadas. Era raro ela percorrer as janelas à procura de frestas. Até houve uma noite em que a porta de fora ficou só encostada. O Gato teve de fazer várias corridas entre a frincha de uma janela e a porta entreaberta. Correu, correu e por fim quase voou. Parecia o Pepe Rápido da história de um outro gato. Até que conseguiu criar uma corrente de ar que impulsionou a porta com estrondo contra o batente.

A dona nem deu pelo estoiro. O Gato foi pé-ante-pé espreitá-la. Ela dormia serena e profundamente. Na manhã seguinte ele ouviu-a a falar consigo mesma: “Como é possível que eu ontem não tenha dado três voltas à chave? Como é possível que nem uma volta eu tenha dado?” e continuou: “Tenho de mudar de vida e voltar a serenar. Tenho, também, de dar mais atenção ao meu Gato que me parece um pouco tristonho”.

O Gato estava feliz a ouvir a arenga da dona. Mas ele sabia que ela não iria acalmar tão cedo. Tinha iniciado um negócio que ele não entendia (escuro não era porque ela dormia o sono dos justos). Chegavam pessoas com bagagens e logo na entrada entregavam-lhe algumas notas. O Gato bem a via escrever em duas colunas de uma folha de cálculo. Uma do deve e outra do haver. A coluna do haver a cada dia que passava mostrava números maiores e a sua soma crescia a olhos vistos.

O Gato Preto não abrangia aquele negócio. E então pensou: “Tenho de ficar mais atento à minha dona, não a quero metida em sarilhos”. Foi assim que o Gato quase deixou escapar a Gatinha Branca, que andava a mirar o Gatão de pelo branco manchado de preto.

Certo dia o Gato Preto estremeceu. Tinha voltado à janela e lá estava o Gatão outra vez. Ele devia vir de longe. Tinha aquele ar fatigado de sempre. Mas caminhava decidido por cima do muro do quintal, mesmo em frente do nariz do Gato.

O Gatão esticava-se com a barriga a roçar na parede. Saltava o muro de fora para dentro e todos os dias demorava mais um pouco.

O Gato passou a contar os minutos diários e verificou a evolução num gráfico de barras (nem imaginam o que a folha de cálculo da dona lhe ensinou). Quando leu aquele gráfico com mais atenção o Gato fez: upsss e disse: “Isto está a ficar fora do meu controlo. Tenho de saltar o muro. Tenho de mostrar as garras ao Gatão”.

Proximamente veremos o Gato Preto a dar uma lição ao Gatão?

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Imagem: Pixabay (o Gatão).

O Gato Preto é um livro aberto

O Gato Preto é um tímido e a Gatinha Branca lança mãos à obra. Começa a rondar.

Ah! Gato Preto pensavas que eu não te seguia? Imaginavas que eu não deixava a minha janela? Sonhavas que eu não seria capaz de saltar o muro? Se pensavas assim vê como estavas engado. Eu a Gatinha Branca segui-te algumas vezes. Saltei da minha janela e marchei no teu encalço. Vi-te caminhando na direção daquele homenzinho tonto que tem medo de gatos pretos. Achei-te tão divertido.

Sabes meu Gato Preto. Eu vi tantas coisas nos teus olhos virados para mim. Sei tanto sobre ti. Juro que dormes junto a uma lareira.  Até pressinto que gostavas de ronronar comigo aí nessa quentura. Consigo imaginar o sabor da tua comidinha. Sinto o teu afeto. Queres saber mais? Os teus olhos também me revelam uma certa timidez, por isso tenho tido tanta vontade de saltar para o teu quintal. Eu costumava ver os teus grandes olhos dourados direcionados para mim e aguardava que resvalasses da tua janela.

Uma das vezes que te escoltei intuí que pensavas numa gatinha preta e voltei para casa tristonha. Eu ia na tua peugada e tu devias ter pressentido os meus olhos na tua direção. Não fizeste qualquer gesto, nem sequer afitaste as orelhas o que provaria que me começavas a sentir.

Voltei para casa. No caminho vinha falando com os meus botões, porque eu também falo com eles: “Gatinha Branca como podes ter interpretado mal aquele olhar faiscante que vinha daquela janela? Devias ter visto melhor para onde aqueles olhos dourados apontavam”.

Sabes meu Gato, eu gosto tanto do cheiro da tua comidinha. Há um dia na semana que me cheira a sardinhas fritas. Nem sei como conheço o cheiro, pois a minha dona não cozinha peixe e também não cozinha carne. A comida na minha casa não tem o perfume que me chega vindo da janela da tua cozinha.

A minha dona, já deves ter reparado nela, é alta e esguia, faz um regime alimentar que designa de vegetariano. Eu não gosto assim muito, mas sinto-me linda e elegante ao lado da minha dona. Então como de bom grado aquela comidinha um pouco sensaborona.

Ah, desculpem. Não sei se sabem quem eu sou. Deixem-me apresentar: eu sou a Gatinha Branca e ando doida pelo Gato Preto que vejo da minha janela. Os olhos dele costumavam cintilar quando me viam, mas, sem mais quê nem porque não, foram atrás do homenzinho que foge a sete pés de gatos pretos.

Eu que me esgueirei pela fresta de uma janela e saltei o muro. Eu a Gatinha Branca que seguiu o Gato Preto e ficou de coração partido com a sua falta de sensibilidade. Depois viu-o a divertir-se. Senti-o a interessar-se pela Gatinha Preta. Os seus olhos disseram-me que era só para se rir com os medos de um certo homenzinho. Começo a desconfiar dele.

Sabem, nos últimos dias não saltei o muro. Já há dias que fico ao lado da minha dona. Aninho-me no seu colo e fruo do seu carinho, mas ela pára pouco no sofá. Rápido se levanta e deambula pela casa: “Acho que ela tem a mania das limpezas”. Então eu aproveito e ando à sua volta. Encosto-me a ela e dou voltas. Ela gosta de brincar comigo. Quando roço as suas pernas escapa-se rápido e eu estatelo-me no chão e, então, ela desata numa risota.

Claro que eu gosto das brincadeiras da minha dona, mas finjo-me amuada quando ela me rouba o apoio e me desampara. Então aproveito para me elevar ao parapeito da janela e aí permanecer à espera que o Gato Preto salte o muro. Mas começo a ficar pesarosa. Sinto-o tão fugidio.

Ouvi, certa vez, a minha dona dizer que quem não aparece esquece. Eu ainda não esqueci o Gato Preto, mas, por vezes, vejo o Gatão a saltar o muro e, depois, a ficar sentado com o rabo enrolado nas patas da frente a olhar para a minha janela. Começo a achar graça ao Gatão.

Se o Gato Preto não vence a timidez. Se ele deixa passar o tempo. A Gatinha Branca enleva-se com o Gatão que ronda a sua janela.

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Imagem: DR (a Gatinha Branca).

O Gato Preto não é pardo

À noite todos os gatos são pardos. Por causa deste ditado popular, falou um gato preto.

À noite todos os gatos são pardos. Não acreditem no provérbio, porque eu à noite continuo a ser o Gato Preto. Eu também sei que as pessoas dizem que os gatos pretos dão azar. Mesmo assim eu quero ser sempre o Gato Preto.

Eu sempre soube que as pessoas imaginam que ao se cruzarem com um gato preto ficam azaradas. Bem as vejo quando se cruzam comigo na rua, achando assim não se cruzarem, passar para o outro lado da rua.

O que estas pessoas não sabem é que lá porque passam para o passeio do outro lado da rua, não deixam de se cruzar comigo. Só se cruzam mais ao lado. Para não se cruzarem com o Gato Preto que eu sou, tinham de inverter a marcha.

Os homens e as mulheres não são tão sábios como imaginam. Existe um de uma idiotice extrema. Quando eu o vejo passar para o outro passeio, do outro lado da rua, falo com os meus botões: “ah meu lindinho tivesse eu o poder de que tu tens medo e fazia-te rodopiar até ficares a meu lado, até roçares no meu pelo, no passeio deste lado da rua”.

Este homenzinho, mesmo tolo, não pode acreditar que nos deixamos de cruzar por termos a rua a separar-nos, quer ela seja larga ou estreita. Ele já devia ter percebido que quando segue o seu caminho está completamente igual ao que era quando iniciou a sua marcha.

O homem burrinho, que vai atrás de ditados sem nexo, ainda não se concentrou em si próprio para perceber que a sua saúde está igual à que apresentava quando me lobrigou ao longe. Por causa dos pilretes como este é que os gatos pretos são raros e é por causa desta raridade, assim o creio, que ele ainda tem medo.

Por causa de nós, gatos pretos, sermos poucos é que eu tive de me virar para a Gatinha Branca que vejo da minha janela. Eu sei que posso parecer um segregacionista, mas acreditem que não sou. Eu só queria ter uma gatinha preta a meu lado, para poder gozar um pouco mais com aquele homenzinho que muda de passeio para não se cruzar comigo.

Como eu gozaria quando o visse no passeio e, nós dois gatos pretos, largássemos as mãos que estavam enlaçadas e cada um caminhasse e ocupássemos os dois lados da rua. Como eu me iria rir. Como nós os dois gatos pretos gargalharíamos quando víssemos que ele invertia a marcha para connosco não se cruzar. Por isto é que eu procuro uma gatinha preta.

Também é verdade que eu sou o Gato Preto e estou encantado com a Gatinha Branca que vejo da minha janela.

A minha dona gosta de me dar sardinhas fritas com arrozinho de tomate. Eu adoro aquela comida. Fico feliz com o arroz que tem um travo ácido, porque ela usa tomate muito bom, mas pouco maduro.

A seguir ao jantar a minha dona dá três voltas à chave e diz-me: “São horas de dormir” e enfia-se na cama. Mas a casa é grande, quando eu quero sair encontro sempre uma fresta por onde me posso esgueirar.

Agora já sabes, Gatinha Branca, que podes saltar para o quintal, espreitar as minhas janelas e logo me verás a escorregar por uma delas.

Um dia destes, no dia das sardinhas fritas com arroz de tomate, convido-te para a minha casa e dividimos o meu jantar. Se a tua dona não chorar, podemos ronronar os dois toda noite junto à minha lareira.

Era este o discurso que o Gato Preto ensaiava sempre que via a Gatinha Branca na janela da casa ao lado.  Ele era um Gato acanhado, embora paciente. E tanto ensaiou que até mudou o tom da voz. Apesar disso continuava desiludido. Passou a colocar-se em frente ao espelho da dona e descobriu que precisava de emendar a postura. Mas sem mais quê nem porque não, os ensaios pararam.

Durante algum tempo o Gato brincou com as superstições de um homenzinho que temia cruzar-se com gatos pretos. Mas um dia destes ele é capaz de acordar, junto à lareira, com o ronronar da Gatinha Branca.

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Foto: Pixabay (o Gato Preto).

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